Fundado pelas freiras da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, o Instituto configurou-se como um espaço voltado para o recolhimento, a assistência e educação de meninas órfãs e pobres.
A Congregação do Bom Pastor foi fundada em Angers, na França, em 1835, por Santa Marie-Euphrasie Pelletier, com a finalidade de ajudar meninas e mulheres que estivessem em situação de risco.
Em 1871, as primeiras irmãs dessa Congregação chegaram ao Brasil. Em 1891, inauguraram a sua primeira casa brasileira, no Rio de Janeiro.
As irmãs do Bom Pastor que vieram para Garanhuns ocupavam, em 1930, o Convento Franciscano de Igarassu/PE. Mas, em finais da década de trinta, depois de um surto de febre tifo o abandonaram. Na sede do antigo Patronato Agrícola de Garanhuns fundaram uma escola para meninas carentes, possivelmente em 1942.
Uma das grutinhas de pedra nas ruínas do Bom Pastor
O Instituto funcionou como internato e escola até o início dos anos oitenta. Neste período, o prédio já se encontrava em condições precárias, oferecendo riscos às freiras e as meninas. Não havendo condições financeiras de recuperar o prédio, e não tendo obtido ajuda da diocese ou do governo, além disso, o prédio não sendo de propriedade da Ordem do Bom Pastor, as meninas foram entregues às suas famílias e as irmãs se transferiram para Recife.
Após esse episódio, o governo estadual, restaurou o prédio e instalou no local o batalhão da Polícia Militar de Garanhuns.
O Instituto Bom pastor recebia meninas órfãs e também meninas de famílias pobres em regime de internato ou externato.
Ficaram famosos os biscoitos de nata, o macarrão e os licores fabricados pelas irmãs e pelas meninas do Bom Pastor.
Referindo-se ao Licor, Joel Silveira , no seu trabalho Freyre no mundo de Apipucos, nos relata um ritual que o sociólogo Gilberto Freyre praticamente exigia de todos que visitassem sua residência:
De todos que lá chegam, o dono da casa só exige uma obrigação, espécie de ritual introdutório: que provem do conhaque de pitanga, cuja receita, invenção sua, ele nunca dá por inteiro, por mais que se insista, limitando-se a dizer vagamente que a infusão - realmente deliciosa - deve ter como base a cachaça chamada "de cabeça" (ou seja, a que sai no primeiro jato do alambique), que as pitangas têm que ser "vermelhíssimas, colhidas na hora" e que são imprescindíveis alguns pingos de licor de violeta, "um licor raro, uma beleza de licor misticamente roxo no seu colorido e seráfico no seu odor", fabricado pelas freiras do Convento do Bom Pastor, em Garanhuns. (SILVEIRA, Joel. Freyre no mundo de Apipucos. Manchete. Rio de Janeiro, a. 25, n. 1316, p. 98-102, jul. 1977.)
O Próprio Gilberto Freyre na sua obra "Açúcar -em tôrno da etnografia, da história, e da sociologia do doce no Nordeste canavieiro do Brasil, faz o seguinte comentário sobre o talento das irmãs do Bom Pastor : "...e acrescentando à tradição dos bolos e doces de aniversário, no preparo e no enfeite dos quais há peritas de talento, não só religiosas- as freiras do Bom Pastor de Garanhus(Pernambuco) continuam famosas pelos seus doces e seus licores de rosas e de violetas..."
BIBLIOGRAFIA:
FREYRE, Gilberto - Açúcar -em tôrno da etnografia, da história, e da sociologia do doce no Nordeste canavieiro do Brasil-Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1987 ;
SILVEIRA, Joel -A milésima segunda noite da avenida Paulista: e outras reportagens; Companhia das letras;
http://northistoria.com.br/convento-franciscano-igarassu/ (Acesso em 21.01.2016)
MEMÒRIAS DO BOM PASTOR
O que relataremos agora é fruto na nossa própria experiência vivida no Instituto Bom Pastor, a partir de meados de 1965 a 1967.
O fato que determinou a nossa inclusão no Bom Pastor foi a dificuldade de meu pai com o àlcool. O seu comportamento ficava bastante alterado de maneira que, para nos proteger, a nossa mãe preferiu nos internar no Bom Pastor.
Era necessário um preparativo para se entrar no Bom Pastor. As freiras entregaram uma lista que descrevia o enxoval que cada menina teria de levar:
O enxoval constava de dois conjuntos de farda compostos de saia azul e blusa branca de mangas compridas. Os sapatos pretos do tipo Vulcabrás, um tênis Conga, combinações, calcinhas, camisolas de flanela de mangas compridas e barra até os pés, lençóis, toalha de banho e rosto, um saco para roupa suja, lenços, talco, sabonete, escova de dente e pasta. As iniciais dos nossos nomes eram bordadas na roupa. Cadernos, lápis, borracha e régua, e outros poucos itens. Pronto o enxoval, fomos levadas ao Convento.
Painel pintado em azulejo- Figura de Jesus- o Bom Pastor
Havia um sino grande na porta principal . Uma porta larga. Puxava-se uma corda, o sino tocava, uma das irmãs vinha atender o visitante.
Nossos pais nos deixaram no parlatório do colégio. Era um lugar onde se recebia as visitas e dali elas não passavam. Doravante só nos encontrariámos com nossos pais naquela sala. Era um ambiente com movéis antigos decorado com imagens e quadros de santos.
Nos despedimos de papai e de mamãe e um fomos levadas por uma freira para o interior do convento.
Ela nos encaminhou ao dormitório que ficava na parte superior do prédio. Era um ambiente largo e amplo sem divisórias, mas havia um lado para as camas das meninas maiores e outro para as camas das menores.
Ao lado de cada cama um pequenino armário onde guardávamos nossos pertences. Apesar do armário ser pequenino, sobrou bastante espaço quando colocamos nossas coisas.
Havia um piano encostado numa das paredes do lado da escada. Não lembro de ter visto alguém tocá-lo.
No lado oposto a entrada da escada havia uma porta que tinha uma pequena janelinha. A noite, de vez em quando, a janelinha se abria, era a irmã responsável pelo dormitório que estava a nos observar. Era proibido falar no dormitório. Ficávamos todas em silêncio até dormir.
Numa das paredes laterais ficava a entrada para o lavatório. Havia um quadro de santo ao lado da porta. Lá estavam as pias para lavar o rosto. Nas paredes haviam cabides onde ficavam pendurados nossos sacos de roupas sujas. O ambiente tinha pequenos compartimentos com portas onde ficavam os sanitários.
A lampada da entrada do lavatório ficava acesa durante toda a noite para facilitar o acesso das meninas pequenas.
Fomos orientadas a manter nossas camas sempre bem forradas e a não trocar de roupas na vista das outras. Sempre entrávamos debaixo do lençol para trocar de roupa.
Pela manhã, uma freira tocava o sino ou batia palmas para nos acordar. Levantávamos e nos dirigíamos aos banheiros para escovar os dentes. Depois, vestíamos as fardas, sempre embaixo do lençol, forrávamos as camas e saíamos em fila, em silêncio, seguindo a freira em direção ao refeitório.
O refeitório ficava na parte térrea do prédio. Havia uma freira responsável pelo refeitório. As meninas maiores ajudavam a fazer as refeições, serviam as mesas e lavavam pratos. Havia separação também no refeitório. Um lado para as meninas grandes , outro para as pequenas. Minha irmã mais velha tinha quase10 anos. Ela transitava pelos dois lados e azucrinava a todas.
Havia uma parede separando o refeitório da cozinha. A parede tinha uma abertura e uma espécie de balcão onde as meninas maiores pegavam as refeições e serviam as mesas. Havia uma freira responsável pela cozinha.
No café, depois de rezarmos, era servido um pequeno pão, muito saboroso, produzido lá mesmo. Ainda hoje sinto saudades do sabor e do cheiro daquele pão. Às vezes era servida uma papa de aveia que tinha um sabor horrível e cheiro desagradável. Havia outros cardápios, mas estes é que ficaram na minha memória.
Não se podia falar no refeitório, mas em alguns dias, a madre dava um sinal permitindo a conversa.
Depois do café, as meninas que estudavam pela manhã iam para sala de aula. As outras iam cuidar de suas tarefas. Toda a limpeza do convento era feita pelas meninas maiores, supervisionadas por uma freira. Havia uma freira responsável por cada atividade. As meninas maiores, lavavam, passavam, cozinhavam, cuidavam da horta e ajudavam as meninas pequenas a se arrumar.
A tarde acontecia o mesmo. Umas iam para a sala de aula e as outras iam cuidar das tarefas.
Os banheiros ficavam na parte térrea. Era um salão dividido em pequenos compartimentos com portas. Em nenhum momento podíamos tirar a roupa na vista das outras. Entrávamos vestidas no banheiro, e depois entregávamos a roupa a menina maior que ficava do lado de fora e que aguardavam que saíssemos do banheiro para ajudar a pentear o cabelo e ajeitar a roupa.
As menores não sabiam tomar banho, a água de Garanhuns é muito fria e dava medo entrar embaixo do chuveiro, sem ajuda, quase sempre, eu só molhava os pés, as mãos e um pouco do cabelo. Este era meu banho. Com o tempo adquiri umas patacas pretas de grude que minha mãe se ocupou de tirá-las nas primeiras férias, não sem antes me dar uns safanões e fazer muitas recomendações sobre como se banhar direito.
Das freiras, a gente só conseguia ver uma parte do rosto e as mãos.
Ao lado dos banheiros, havia a enfermaria com alguns leitos. Nunca estive lá. Só as meninas doentes entravam lá.
Havia, na parte térrea, um galpão grande, aberto, onde nós recreávamos no intervalo das aulas. Brincávamos de "Escravos de Jó", de roda, de Amarelinha, de barra-bandeira ou de boneca.
Nos arredores do galpão havia o jardim, com flores e grutinhas de pedras onde haviam esculturas de santos. Eu gostava de todas as grutinhas. Sempre que podia fugia pra lá. Mais do que os santos era o barulhinho das águas das cascatinhas nas grutas que me encantava.
Havia também o pomar com siriguelas, pitombas, jaboticabas e carambolas. Não podíamos ir lá sem autorização. As frutas eram colhidas quando estavam maduras e servidas no lanche nos intervalos das aulas, ou na sobremesa.
Num local separado do prédio maior , mais para o meio do jardim, tinha uma caixa dágua muito alta que tinha uma espécie de degraus de ferro da base até o topo.
Depois da caixa dágua ficava um pequeno prédio onde funcionava uma espécie de ambulatório. Só podia ir lá quem precisava de tomar algum remédio ou tratar algum ferimento. Algumas vezes, eu vi meninas se dirigindo ao local juntamente com a freira responsável. Em seguida eu só ouvia o choro das meninas. Uma vez, me disseram que era o remédio de sarna que doía. As meninas voltavam de lá com um cheiro horrível. Eu nunca estive lá.
No térreo ficava também o parlatório e a capela. Ao parlatório só íamos para receber as visitas ou para falar com a madre superiora quando fazíamos alguma traquinagem. Era no parlatório que corriamos para os braços de papai e de mamãe quando eles iam nos visitar, aos sábados ou domingos, de 15 em 15 dias.
Perto do parlatório ficava uma pequena cantina onde estavam expostas as guloseimas fabricadas pelas irmãs. Nós podíamos comprar e nossos pais pagavam a conta no dia da visita. Certa vez levamos uma bronca por causa da conta que extrapolou o orçamento. Mas, era difícil resistir a docinhos tão gostosos.
Aos sabádos e domingos, antes do café da manhã, nos dirigíamos em fila, à Capela. Na porta, havia um pequeno recipente com água. Todas tocavam na água e se benziam. Assístíamos a uma breve missa, ministrada pelo padre capelão do convento, e só depois iámos para o refeitório.
Às vezes, o Bispo ia visitar o Convento. Havia uma correria. Vestíamos a nossa farda de festa. Preparava- se uma programação especial de músicas e dramatizações. Numa das apresentações especiais na Capela, minha irmã caçula cantou uma música que dizia: " O caminho para o céu é Jesus".
Esta era uma música que ela aprendeu na igreja presbiteriana. Minha mãe era membro da igreja Presbiteriana Central de Garanhuns e quando fomos para o Bom pastor, nós já tinhamos muitos costumes protestantes.
O Bispo, Dom Adelino Dantas, botou minha irmã no colo, parabenizou e disse que ela cantava muito bem. Ele cumprimentava todas as crianças e tinha um olhar de amor.
Para a apresentação fora da Capela, as irmãs fizeram uma roupa de papel crepom colorido e desenharam bigodinhos de gato na minha irmã caçula e ela cantou: " Eu sonhei que era um gatinho que gostava de arranhar. "
Embora fosse do conhecimento das irmãs que nós haviamos sido educadas na fé protestante isso nunca nos causou nenhuma dificuldade e nunca fomos constragidas a fazer algo que não quiséssemos.
Enquanto, a noite, ao lado de suas camas todas as meninas rezavam, nós fazíamos as nossas orações ao modo protestante. Muitas vezes, até rezávamos mesmo, por que gostávamos de fazer o que as outras estavam fazendo e quando entrávamos na capela nos benziamos na aguinha benta, e nunca fomos constragidas a fazê-lo ou a não fazê-lo.
As tarde de sábado e domingo eram livres, mas, se quisessemos poderíamos ir ao refeitório ajudar a moldar os biscoitinhos de nata feitos pelas freiras e pelas meninas maiores. Moldávamos a massa com o garfo e quando a freira responsável tirava a vista jogávamos na boca tantos quanto pudéssemos.
Havia lá também um pequeno fabrico de macarrão. As meninas maiores faziam a massa e penduravam as tiras de macarrão para secar , depois empacotavam.
A noite, depois do jantar, conversavamos um pouco. As meninas maiores ficavam numa sala aprendendo a bordar. Depois, a irmã tocava o sino e nós a seguíamos em fila, para o dormitório. Minha irmã mais nova era a primeira da fila, pois era a menorzinha do internato e tinha seis anos.
Entrávamos em baixo do lençol, vestíamos a camisola de manga compridas e de barra até os pés, cada uma fazia sua oração e deitava-se. A freira apagava a luz, despedia-se da gente , entrava na sua clausura e nós íamos dormir. A luzinha que iluminava o santo, perto do lavatório, permanecia acesa a noite toda.
Na parte superior do prédio havia uma porta pela qual não podíamos passar. A porta que dava acesso a clausura. Nem imagino como poderia ser aquilo lá. A única lembrança que tenho daquele local, é a de um gemido constante que vinha daquela direção. As meninas me disseram que era a Madre vovozinha que estava muito doente. Eu não a conheci. Quando fui para o Bom Pastor, ela já estava doente e dela eu só conheci o gemido e o pranto. Aquilo me deixava triste.
Não havia castigos muitos severos para nossas travessuras. Em geral, levávamos uma bronca da freira que estivesse cuidando de nós. As irmãs não batiam na gente, mas quando cometíamos falta grave, podíamos ficar de castigo, em pé, olhando para parede , ou sentadas num canto por alguns eternos minutos, sem falar com ninguém.
O castigo mais severo era ficar com as mãos presa numa sacola de pano. Mas só acontecia, quando uma menina agredia a outra com tapas, ou murros etc. assim mesmo, se fosse reincidente. Eram mais comuns as outras opções.
A Madre Superiora era uma senhora magrinha, de olhar e semblante severo. Nós a chamávamos de Nossa Madre. Ela só interferia, quando era para fazer uma recomendação ou orientação coletiva. Em geral, as outras irmãs resolviam os conflitos. Nossa Madre nunca brigava com a gente , mas tínhamos tinha mêdo dela.
A irmã que ficava mais tempo conosco, chamava-se Madre Cila. Ela passava o dia todo com a gente e a noite velava por nós no dormitório. Era uma mulher bonita, usava um óculos de lente esverdeada. Ela não era muito de tocar na gente , mas o olhar dela nos acariciava. Há pessoas que conseguem demonstrar com o olhar, todo sentimento. Madre Cila é uma destas. Ela sorria com os olhos, se entrestecia com os olhos, e repreendia com os olhos. Sempre sabiamos quando estávamos fazendo a coisa certa ou errada, pelo olhar de Madre Cila.
Outra irmã que ficou na minha memória foi a Madre Joana Angélica. Ela não vivia no Bom Pastor quando eu cheguei lá. Muito tempo depois, ela chegou. Ela também era muito dócil e brincava conosco.
As outras irmãs me pareciam muito sérias e exigentes e ficavam mais com as meninas grandes orientando as tarefas domésticas: limpeza, lavar roupas, cozinhar, bordar etc.
Nas datas religiosas havia rezas extras no convento e programações especiais na capela. Nas paredes do refeitório, havia alguns quadros pequenos com figuras da crucificação. Durante a semana santa, rezavamos na frente daqueles quadrinhos. Para cada quadrinho tinha texto. A irmã lia um texto no livrinho e depois nós rezavamos o pai nosso, a ave maria e glória ao pai. Às vezes, os mesmos quadrinhos estavam na capela. Hoje sei que é a via sacra. Mas, naquela época eu não entendia.
Das meninas do Bom pastor, poucos nomes me ficaram na memória. A lembrança mais forte que tenho é de Ricardina. Uma menina magrinha, usava franja no cabelo chanel. Nós estávamos sempre juntas. Ela sempre me explicava as coisas que eu não conseguia entender.
Ela me ensinou a identificar as meninas que estavam se preparando para noviças, também me falou da madre vovozinha e de Dacimar.
Dacimar era uma das meninas maiores. Ela era morena e alta, tinha cabelos médios e crespos. Como as meninas maiores estavam sempre ocupadas com as tarefas domésticas e preferiam a companhia das outras meninas maiores, eu tive pouco contato com ela, mas seu rosto nunca me saiu da lembrança.
Depois que Dacimar adoeceu, não a vimos mais. Ela ficava na enfermaria e as pequenas, não tinhamos acesso. A pedido das freiras, rezávamos por ela.
Um dia Ricardina me avisou que era preciso trocar de roupa para irmos ao enterro de Dacimar. Eu ainda não entendia muito bem o que era morte, mas um vazio tomou conta de mim naquela hora.
Pela primeira vez, todas nós, todas juntas, freiras e meninas, saíamos do Convento. Seguimos por uma estrada de barro, rumo ao cemitério, passos lentos. A nossa frente, um caixão, carregado pelas meninas maiores e pelas irmãs. Havia também outras pessoas, gente que não era do convento, talvez, parentes de Dacimar. Não sei.
E nós cantávamos: " No céu, no céu, com minha mãe estarei, na santa glória, um dia, junto a virgem Maria..." Foi a primeira vez que ouvi esta música, e ela nunca saiu da minha memória. Foi a primeira vez que eu senti a tristeza pela morte de alguém.
Deixamos Dacimar lá e voltamos caladas. Desta vez nenhuma irmã precisou pedir que fizéssemos silênco. A morte nos emudeceu.
Das freiras, a gente só conseguia ver uma parte do rosto e as mãos.
Ao lado dos banheiros, havia a enfermaria com alguns leitos. Nunca estive lá. Só as meninas doentes entravam lá.
Havia, na parte térrea, um galpão grande, aberto, onde nós recreávamos no intervalo das aulas. Brincávamos de "Escravos de Jó", de roda, de Amarelinha, de barra-bandeira ou de boneca.
Nos arredores do galpão havia o jardim, com flores e grutinhas de pedras onde haviam esculturas de santos. Eu gostava de todas as grutinhas. Sempre que podia fugia pra lá. Mais do que os santos era o barulhinho das águas das cascatinhas nas grutas que me encantava.
Havia também o pomar com siriguelas, pitombas, jaboticabas e carambolas. Não podíamos ir lá sem autorização. As frutas eram colhidas quando estavam maduras e servidas no lanche nos intervalos das aulas, ou na sobremesa.
Num local separado do prédio maior , mais para o meio do jardim, tinha uma caixa dágua muito alta que tinha uma espécie de degraus de ferro da base até o topo.
Depois da caixa dágua ficava um pequeno prédio onde funcionava uma espécie de ambulatório. Só podia ir lá quem precisava de tomar algum remédio ou tratar algum ferimento. Algumas vezes, eu vi meninas se dirigindo ao local juntamente com a freira responsável. Em seguida eu só ouvia o choro das meninas. Uma vez, me disseram que era o remédio de sarna que doía. As meninas voltavam de lá com um cheiro horrível. Eu nunca estive lá.
No térreo ficava também o parlatório e a capela. Ao parlatório só íamos para receber as visitas ou para falar com a madre superiora quando fazíamos alguma traquinagem. Era no parlatório que corriamos para os braços de papai e de mamãe quando eles iam nos visitar, aos sábados ou domingos, de 15 em 15 dias.
Perto do parlatório ficava uma pequena cantina onde estavam expostas as guloseimas fabricadas pelas irmãs. Nós podíamos comprar e nossos pais pagavam a conta no dia da visita. Certa vez levamos uma bronca por causa da conta que extrapolou o orçamento. Mas, era difícil resistir a docinhos tão gostosos.
Aos sabádos e domingos, antes do café da manhã, nos dirigíamos em fila, à Capela. Na porta, havia um pequeno recipente com água. Todas tocavam na água e se benziam. Assístíamos a uma breve missa, ministrada pelo padre capelão do convento, e só depois iámos para o refeitório.
Às vezes, o Bispo ia visitar o Convento. Havia uma correria. Vestíamos a nossa farda de festa. Preparava- se uma programação especial de músicas e dramatizações. Numa das apresentações especiais na Capela, minha irmã caçula cantou uma música que dizia: " O caminho para o céu é Jesus".
Esta era uma música que ela aprendeu na igreja presbiteriana. Minha mãe era membro da igreja Presbiteriana Central de Garanhuns e quando fomos para o Bom pastor, nós já tinhamos muitos costumes protestantes.
O Bispo, Dom Adelino Dantas, botou minha irmã no colo, parabenizou e disse que ela cantava muito bem. Ele cumprimentava todas as crianças e tinha um olhar de amor.
Para a apresentação fora da Capela, as irmãs fizeram uma roupa de papel crepom colorido e desenharam bigodinhos de gato na minha irmã caçula e ela cantou: " Eu sonhei que era um gatinho que gostava de arranhar. "
Embora fosse do conhecimento das irmãs que nós haviamos sido educadas na fé protestante isso nunca nos causou nenhuma dificuldade e nunca fomos constragidas a fazer algo que não quiséssemos.
Enquanto, a noite, ao lado de suas camas todas as meninas rezavam, nós fazíamos as nossas orações ao modo protestante. Muitas vezes, até rezávamos mesmo, por que gostávamos de fazer o que as outras estavam fazendo e quando entrávamos na capela nos benziamos na aguinha benta, e nunca fomos constragidas a fazê-lo ou a não fazê-lo.
As tarde de sábado e domingo eram livres, mas, se quisessemos poderíamos ir ao refeitório ajudar a moldar os biscoitinhos de nata feitos pelas freiras e pelas meninas maiores. Moldávamos a massa com o garfo e quando a freira responsável tirava a vista jogávamos na boca tantos quanto pudéssemos.
Havia lá também um pequeno fabrico de macarrão. As meninas maiores faziam a massa e penduravam as tiras de macarrão para secar , depois empacotavam.
A noite, depois do jantar, conversavamos um pouco. As meninas maiores ficavam numa sala aprendendo a bordar. Depois, a irmã tocava o sino e nós a seguíamos em fila, para o dormitório. Minha irmã mais nova era a primeira da fila, pois era a menorzinha do internato e tinha seis anos.
Entrávamos em baixo do lençol, vestíamos a camisola de manga compridas e de barra até os pés, cada uma fazia sua oração e deitava-se. A freira apagava a luz, despedia-se da gente , entrava na sua clausura e nós íamos dormir. A luzinha que iluminava o santo, perto do lavatório, permanecia acesa a noite toda.
Na parte superior do prédio havia uma porta pela qual não podíamos passar. A porta que dava acesso a clausura. Nem imagino como poderia ser aquilo lá. A única lembrança que tenho daquele local, é a de um gemido constante que vinha daquela direção. As meninas me disseram que era a Madre vovozinha que estava muito doente. Eu não a conheci. Quando fui para o Bom Pastor, ela já estava doente e dela eu só conheci o gemido e o pranto. Aquilo me deixava triste.
Não havia castigos muitos severos para nossas travessuras. Em geral, levávamos uma bronca da freira que estivesse cuidando de nós. As irmãs não batiam na gente, mas quando cometíamos falta grave, podíamos ficar de castigo, em pé, olhando para parede , ou sentadas num canto por alguns eternos minutos, sem falar com ninguém.
O castigo mais severo era ficar com as mãos presa numa sacola de pano. Mas só acontecia, quando uma menina agredia a outra com tapas, ou murros etc. assim mesmo, se fosse reincidente. Eram mais comuns as outras opções.
A Madre Superiora era uma senhora magrinha, de olhar e semblante severo. Nós a chamávamos de Nossa Madre. Ela só interferia, quando era para fazer uma recomendação ou orientação coletiva. Em geral, as outras irmãs resolviam os conflitos. Nossa Madre nunca brigava com a gente , mas tínhamos tinha mêdo dela.
A irmã que ficava mais tempo conosco, chamava-se Madre Cila. Ela passava o dia todo com a gente e a noite velava por nós no dormitório. Era uma mulher bonita, usava um óculos de lente esverdeada. Ela não era muito de tocar na gente , mas o olhar dela nos acariciava. Há pessoas que conseguem demonstrar com o olhar, todo sentimento. Madre Cila é uma destas. Ela sorria com os olhos, se entrestecia com os olhos, e repreendia com os olhos. Sempre sabiamos quando estávamos fazendo a coisa certa ou errada, pelo olhar de Madre Cila.
Outra irmã que ficou na minha memória foi a Madre Joana Angélica. Ela não vivia no Bom Pastor quando eu cheguei lá. Muito tempo depois, ela chegou. Ela também era muito dócil e brincava conosco.
As outras irmãs me pareciam muito sérias e exigentes e ficavam mais com as meninas grandes orientando as tarefas domésticas: limpeza, lavar roupas, cozinhar, bordar etc.
Nas datas religiosas havia rezas extras no convento e programações especiais na capela. Nas paredes do refeitório, havia alguns quadros pequenos com figuras da crucificação. Durante a semana santa, rezavamos na frente daqueles quadrinhos. Para cada quadrinho tinha texto. A irmã lia um texto no livrinho e depois nós rezavamos o pai nosso, a ave maria e glória ao pai. Às vezes, os mesmos quadrinhos estavam na capela. Hoje sei que é a via sacra. Mas, naquela época eu não entendia.
Das meninas do Bom pastor, poucos nomes me ficaram na memória. A lembrança mais forte que tenho é de Ricardina. Uma menina magrinha, usava franja no cabelo chanel. Nós estávamos sempre juntas. Ela sempre me explicava as coisas que eu não conseguia entender.
Ela me ensinou a identificar as meninas que estavam se preparando para noviças, também me falou da madre vovozinha e de Dacimar.
Dacimar era uma das meninas maiores. Ela era morena e alta, tinha cabelos médios e crespos. Como as meninas maiores estavam sempre ocupadas com as tarefas domésticas e preferiam a companhia das outras meninas maiores, eu tive pouco contato com ela, mas seu rosto nunca me saiu da lembrança.
Depois que Dacimar adoeceu, não a vimos mais. Ela ficava na enfermaria e as pequenas, não tinhamos acesso. A pedido das freiras, rezávamos por ela.
Um dia Ricardina me avisou que era preciso trocar de roupa para irmos ao enterro de Dacimar. Eu ainda não entendia muito bem o que era morte, mas um vazio tomou conta de mim naquela hora.
Pela primeira vez, todas nós, todas juntas, freiras e meninas, saíamos do Convento. Seguimos por uma estrada de barro, rumo ao cemitério, passos lentos. A nossa frente, um caixão, carregado pelas meninas maiores e pelas irmãs. Havia também outras pessoas, gente que não era do convento, talvez, parentes de Dacimar. Não sei.
E nós cantávamos: " No céu, no céu, com minha mãe estarei, na santa glória, um dia, junto a virgem Maria..." Foi a primeira vez que ouvi esta música, e ela nunca saiu da minha memória. Foi a primeira vez que eu senti a tristeza pela morte de alguém.
Deixamos Dacimar lá e voltamos caladas. Desta vez nenhuma irmã precisou pedir que fizéssemos silênco. A morte nos emudeceu.